À sombra do passado
"Os Anéis do Poder" retorna maior, melhor e mais sinistra no segundo ano, mas ainda carrega erros da primeira temporada.
Errar não é algo incomum na Era de Ouro da televisão, que não trabalha com a resposta do seu público em tempo real.
“Breaking Bad”, na AMC, começou claudicante e só virou fenômeno de audiência quando passou a fazer parte do catálogo da Netflix.
Muita gente desistiu de “The Leftovers” já no primeiro ano e perdeu um dos melhores dramas televisivos já escritos pelo ser humano.
A versão americana de “The Office” não passava de uma cópia sem personalidade da original britânica até desabrochar a partir da segunda temporada.
Apesar dos dois primeiros episódios esplendorosos, a temporada de estreia de “O Senhor dos Anéis: Os Anéis do Poder” exibiu uma série de equívocos, da falta de carisma de diversos personagens a textos sem a menor profundidade dramática, passando por clichês narrativos vergonhosos e a mania atual de colocar a mensagem antes do entretenimento.
Na segunda temporada, que estreia nesta quinta-feira (29) com três episódios disponíveis na Amazon Prime Video, os showrunners J. D. Payne e Patrick McKay corrigem alguns erros que cometeram na sua estreia na Terra-Média, mas ainda sofrem com a herança que eles mesmos criaram.
Uma das principais dificuldades da série continua sendo a coesão entre as diversas narrativas em pontos diferentes daquele mundo criado por J.R.R. Tolkien. Ela fica ainda mais evidente neste trio de episódios iniciais.
Boa parte da abertura da segunda temporada é dedicada ao passado de Sauron, vivido por dois atores, o primeiro sendo Jack Lowden (“Slow Horses”), que faz o vilão no início da Segunda Era, logo após a derrota do seu mestre, Morgoth. O segundo, claro, é Charlie Vickers, que assume a forma humana de Halbrand logo depois de ser traído por Adar (agora vivido por Sam Hazeldine) e morto por centenas de orcs na fortaleza de Forodwaith.
A série finalmente lembra que sua protagonista é Galadriel (Morfydd Clark), a guerreira-feiticeira élfica que se deixou enganar por Sauron/Halbrand na temporada anterior. Ela tenta convencer Elrond (Robert Aramayo) a usar os três anéis forjados por Celebrimbor (Charles Edwards) para derrotar o senhor das trevas, mas o amigo acredita que as joias podem levar seus usuários à destruição.
No meio de tudo isso, a jornada do Mago Sem Nome Que Terá Nome em Breve (Daniel Weyman) com a hobbit pés-Peludos Nori (Markella Kavenagh) por Rhûn fica espremida e só floresce no episódio seguinte, apesar de ajudar a eclipsar o drama dos anões em busca de salvar o reino de Khazad-dûm do Balrog que assombra suas cavernas rochosas.
Como se não bastasse, o terceiro episódio finalmente viaja para as Terras do Sul para encarar as tragédias de Isildur (Maxim Baldry), Arondir (Ismael Cruz Córdova) e Theo (Tyroe Muhafidin). E para Númenor, que começa a sofrer uma revolta política e popular com o retorno fracassado de Elendil (Lloyd Owen) e Míriel (Cynthia Addai-Robinson) da campanha contra os orcs.
Ao longo da segunda temporada, algumas narrativas começam a se fundir, mas ainda fragmentadas demais para a série construir algum núcleo emocional -o melhor e mais importante é protagonizado pelo Celebrimbor de Edwards, mantido sob o poder de Sauron, agora sob a forma de Annatar (ainda Vickers, mas de peruca loira), para completar a missão de criar os anéis do poder.
Quem paga o maior preço disso é Númenor, totalmente asfixiada pelos roteiristas. Lar da saga política e religiosa mais complexa da Segunda Era de Tolkien, a ilha povoada pelos humanos gera uma intriga palaciana pálida e de difícil conexão, na qual decisões são aceitas sem muitos confrontos e tramas ocorrem de maneira superficial e sem explicações plausíveis. Os antepassados de Aragorn, humanos orgulhosos e nobres, viram personagens esquecíveis, rasos e novelescos.
A dificuldade do texto moldar boas tramas surpreende, já que a série exala ainda mais riqueza nesta segunda temporada. A batalha em Eregion que toma os dois últimos episódios é grandiosa, os efeitos visuais são dignos de superproduções hollywoodianas e a direção de arte é impecável.
No entanto, a equipe de roteiristas, grande parte com experiência em ótimas séries como “Breaking Bad”, parece sofrer com a falta de material original literário. Não são poucas as vezes que repetem ou adaptam frases famosas de “O Senhor dos Anéis”, tanto dos filmes quanto dos livros. Em vez de ajudar na imersão, estes momentos nos lembram a qualidade da competição anterior.
Uma lição errada aprendida pelos showrunners reside no amansar de Galadriel. Talvez movidos pela repercussão negativa entre fãs xiitas de Tolkien, que têm dificuldades em aceitar a elfa como uma guerreira impaciente, os criadores da série diminuíram sua importância e injetaram mais complacência à personagem. O preço é alto na sua passividade: Galadriel basicamente fica prisioneira, emocionada ou discutindo a importância dos anéis com Elrond.
A decisão deixa a segunda temporada desfocada por diversos episódios. Cabe à trama entre Sauron e Celebrimbor segurar a espinha dorsal emocional na segunda metade dos oito episódios.
Não gosto de me colocar como porta-voz de fãs ao ponto de prever como eles se sentirão nesta nova passagem pela Terra-Média, mas certamente os produtores estão tentando agradar com pílulas que pouco fazem diferença para o contexto da trama: Tom Bombadil (Rory Kinnear) é transportado para as terras pouco exploradas de Rhûn, onde serve de Yoda fast-food para O Estranho em busca da sua identidade, uma interação fofa e musical, porém alheia ao resto das histórias; ents fazem uma rápida aparição sem muita repercussão nas Terras do Sul; e Círdan, o mais velho e sábio dos elfos ganha corpo com Ben Daniels, mas some logo depois do segundo capítulo.
Ao mesmo tempo em que entregam esses presentes, os criadores tomam liberdades criativas que deixarão muitos fiéis de orelhas pontudas quentes. Muito disso vem da necessidade de se reduzir o passar dos anos e condensar a trama. Funciona magnificamente com a de Eregion, que toma corpo e mostra como a série pode ser ambiciosa, original e respeitosa. E também com a presença do Mago Sombrio de Ciarán Hinds como uma espécie de Saruman de Rhûn que deve ganhar mais corpo no futuro.
Porém, mostra seu lado fraco nas resoluções de Khazad-dûm, que coloca os personagens mais carismáticos da série em um pano de fundo trágico que não funciona neste momento -todos sabem o eventual destino de Moria.
No fim, a segunda temporada de “Os Anéis de Poder” supera vários problemas da anterior e começa a encontrar sua identidade. Ainda caminha trôpega sem a confiança de desafiar os fãs ao deixar de apostar tudo em Galadriel e diluir seus pontos de vista. Não adianta achar que deixar o clima mais sombrio e apostar nos vilões vai resolver todos os problemas.
Para a terceira temporada, a resposta pode residir em menos ambição e mais preocupação com seus dramas intimistas. É um equilíbrio complicado, mas os novos episódios mostram que existe um caminho a ser seguido.
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