A tragédia do planeta dos macacos
Diretor de "A Máfia dos Tigres" retorna ao bizarro mundo dos criadores de animais exóticos na minissérie "Chimp Crazy".
Em uma das cenas mais tensas e chocantes de “Não! Não Olhe”, filme de Jordan Peele lançado em 2022, Gordy, um chimpanzé treinado para atuar numa sitcom, mata o elenco da série e se aproxima do último sobrevivente com as mãos e os dentes cobertos de sangue.
Se você não lembra dela, assista ao vídeo abaixo.
Apesar do episódio ser ficcional, ele foi inspirado por um caso semelhante vivido por um macaco chamado Travis, adotado por um casal norte-americano quando ainda era bebê. Tratado “como filho” por Sandra e Jerome Herold, o animal era estrela de comerciais, tirava fotos com policiais, andava de carro para cima e para baixo e virou uma celebridade local.
Até que cresceu e começou a ter seus instintos selvagens aflorados. Primeiro, pulou no meio de uma das ruas da cidade e se recusou a voltar para o veículo dos “tutores” por várias horas. Perdeu o privilégio de andar livremente pela propriedade da família. Numa noite, escapou do local e matou uma amiga do casal ao ponto de deixá-la irreconhecível.
Travis, ferido pela “própria mãe”, foi finalmente morto por um policial que costumava cumprimentá-lo sempre que o via no banco de passageiros.
“Não sei dizer, mas houve uma conexão neste momento. Eu ouvi a voz dele dizendo na minha cabeça: ‘Me mate, por favor’”.
O evento é recordado em “Chimp Crazy”, primeira minissérie do diretor Eric Goode desde que ganhou fama mundial pelo fenômeno pandêmico “A Máfia dos Tigres”, conduzido ao lado de Rebecca Chaiklin.
Mas a história, contada em quatro partes, não é a de Travis ou dos Jeromes.
A minissérie, que estreou neste domingo na HBO/MAX, se concentra em Tonia Haddix, uma mulher extravagante que vira parte vital de uma fundação que abriga dezenas de símios em suas instalações, vários deles em condições inadequadas. A instituição fundada por Connie Casey, conhecida por vender animais selvagens para qualquer pessoa disposta a pagar muita grana, vira alvo do PETA e, após um ano de disputa judicial, ela é fechada e os macacos transferidos para um santuário.
Só tem um problema. Tonka, o chimpanzé mais famoso do local, some antes da transferência. Haddix, que dizia amar o animal como um filho, atesta que ele morreu de causas naturais. Ninguém acredita e uma investigação se inicia com depoimentos de Alan Cumming, que atuou com Tonka em “Buddy”, filme de 1997.
Goode tenta injetar na série documental os mesmos elementos de “A Máfia dos Tigres”. O maior deles é o foco em Haddix, uma perua extremamente vaidosa que não enxerga maldade em suas ações. É quase um encontro entre “A Rainha de Versalhes” e um filme da Nat Geo.
Mas ela não é Joe Exotic. E não há uma Carole Baskin como antagonista. Nem mesmo Goode pode estar presente na captação das imagens, já que ele virou persona non grata neste mundo de animais exóticos. Para ter acesso e depoimentos, ele contrata um diretor falso que já trabalhou como treinador de animais.
Ou seja, “Chimp Crazy” muitas vezes se rende ao sensacionalismo que tanto critica.
Isso gera boa televisão? Pode apostar. Cada episódio termina clamando por mais.
A diferença agora está no tamanho da sua empatia pelos personagens, o que deve influenciar na recepção da obra. Em “A Máfia dos Tigres”, os animais terminam em segundo plano diante da bizarrice daqueles humanos.
Em “Chimp Crazy”, eles são a verdadeira atração, por mais que o diretor tente extrair suco de cafonice dos envolvidos -por exemplo, ele dedica boa parte de um episódio conversando com Haddix enquanto ela preenche os lábios numa clínica de estética.
Suportar a verdade sobre aqueles chimpanzés presos e explorados é, simultaneamente, o grande trunfo e a coisa mais difícil de ver na minissérie. “Chimp Crazy” não é uma tragicomédia como “A Máfia dos Tigres”, mas um drama sobre a exploração dos animais em busca do espetáculo vazio.
Mas o programa não estaria fazendo o mesmo? É uma linha muito tênue que nem sempre deixa de ser cruzada pelo autor. Ainda assim, uma mensagem que precisa ser transmitida para um público avesso a narrativas mais comportadas.
Uma ironia que Jordan Peele deve adorar.
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