O "Rambo" dos Novos Tempos
"Rebel Ridge" dribla problemas nas filmagens e consolida Jeremy Saulnier como um dos cineastas mais talentosos de Hollywood.
Acompanho a carreira de Jeremy Saulnier desde que o cineasta apareceu com a história de vingança crua de “Ruína Azul”, filme de 2013 que foi uma espécie de tudo ou nada para o diretor: ele esvaziou a poupança da mulher, estourou os cartões de crédito e buscou o financiamento coletivo para financiar o projeto.
Dois anos depois, tive a oportunidade de sentar com Saulnier por meia hora para uma conversa (nunca publicada) sobre sua ópera punk sanguinolenta “Sala Verde”, que dei em primeira mão no Brasil durante a cobertura do Festival de Cannes de 2015.
Elogiado e incensado, o cineasta acabou na mira da HBO, onde dirigiu os primeiros episódios da terceira temporada de “True Detective”, e da poderosa Netflix, que o seduziu para trabalhar no discreto “Noite de Lobos”, seu primeiro longa escrito por outra pessoa.
Mas a parceria deu frutos com “Rebel Ridge”, melhor filme da Netflix lançado em 2024 até agora e uma aula de tensão comandada por Saulnier e pelo seu protagonista, Aaron Pierre (“The Underground Railroad”).
Essa tensão, na verdade, já vem desde as filmagens. Previstas para iniciarem em abril de 2020, elas foram adiadas por causa da pandemia. Quando a produção retornou, um ano depois, alguns atores coadjuvantes tiveram problema de agenda e precisaram cair fora, como Erin Doherty (“The Crown”) e James Badge Dale, substituídos por AnnaSophia Robb (“O Diário de Carrie”) e David Denman (“Mare of Easttown”), respectivamente.
Tudo parecia superado, porém veio uma surpresa já com as filmagens em andamento na Louisiana: John Boyega (“Star Wars”), dono do papel principal do longa, deixou o projeto abruptamente alegando problemas familiares. Uma matéria da “Hollywood Reporter” revelou que o ator simplesmente foi embora e os produtores só descobriram quando foram procurá-lo no hotel -o agente dele nega essa denúncia e confirma a versão do seu cliente.
Pierre foi encontrado rapidamente.
E não decepciona.
Seu Terry Richmond tem tudo para emplacar uma franquia interessante para a Netflix.
Na superfície, “Rebel Ridge” é um derivativo de “Rambo” adaptado para os novos tempos.
Terry está de passagem por uma cidade do sul dos Estados Unidos. Ele ouve Iron Maiden no volume máximo enquanto pedala sua bicicleta a toda a velocidade.
Só para quando um carro de polícia o derruba da sela. Logo chega outro veículo oficial. Terry é negro. Os policiais são brancos, quase clones. Terry sabe dos seus direitos, mas sabe a situação em que se encontra. A região onde se encontra. Cada diálogo é um crescente de intensidade. Quem conhece o trabalho de Saulnier, sabe que normalmente isso leva a um banho de sangue, vingança e catarse.
Não é o caso. Os policiais apreendem o dinheiro que Terry carrega em sua mochila, parte dele para pagar a fiança do primo, que está prestes a ser transferido para um presídio onde tem um alvo nas costas.
A apreensão é uma legalidade abusiva que tem respaldo em eventos reais que aconteceram nos EUA. Departamentos corruptos que geram fortunas para quem faz parte da sua rede, de delegados a juízes.
Terry estava disposto a deixar isso passar. Sabe que não tem como lutar contra esse exército. Ele avalia toda ação pensando na reação. É inteligente, mas não é Jason Bourne. Terry é inundado pela burocracia nociva do sistema legal, que não o deixa pagar a fiança, mesmo com seu dinheiro de posse do estado no mesmo prédio.
Ele tem uma ótima ideia. Confrontar o xerife vivido por Don Johnson, um ator que anda se especializando boas obras de cunho antirracista. “Tem 36 mil dólares na mochila. Me dê os 10 mil para pagar a fiança do meu primo e fique com os outros 26 mil”, oferece ele para o policial corrupto. Uma proposta razoável. Chegam a um acordo. Terry é ludibriado de novo.
Decide encarar o xerife fora da delegacia. O policial, antes de encarar um sujeito com duas vezes seu tamanho, levanta sua ficha. ex-mariner, mas que não serviu em nenhuma excursão perigosa. Aparentemente, Terry é um fuzileiro naval do segundo escalão.
Isso vai ser fácil de se resolver com um revólver na mão e a certeza de impunidade branca. A não ser por um acrônimo na ficha de Terry.
o xerife não tem tempo de saber seu significado.
Uma batalha de um homem contra todo um sistema sujo, então, eclode.
Mas, ao contrário de John Rambo na sua longa carreira, Terry Richmond não mata.
Foi um desafio que Jeremy Saulnier propôs a si mesmo quando começou a escrever “Rebel Ridge”: “Será que consigo fazer um filme em que ninguém morre?”
Talvez, sim. Talvez, não.
O cineasta potencializa ainda mais a paixão por John Carpenter na condução da sua tensão, apoiado pela trilha sonora opressiva dos irmãos Brooke e Will Blair e a fotografia versátil de David Gallego. Tem certos momentos que a televisão parece trincar de tão tensa.
O mais interessante é que o cineasta vai contra sua própria filmografia. Ele tinha tudo para causar um banho de sangue muito maior que em “Sala Verde”. Mas o longa é feito para brincar com as emoções do espectador, que cada vez mais assume as dores do protagonista e fica esperando o momento catártico que talvez nunca chegue -algo parecido com o que Kléber Mendonça, outro discípulo de Carpenter, fez em “O Som ao Redor”, em menor escala.
Isso deixa o thriller ainda mais provocante.
Seria muito fácil ver o personagem virar um Liam Neeson da vida, mas o protagonista brinca exatamente com esse desejo do espectador e trafega por faixas inesperadas dentro de uma premissa que já vimos zilhões de vezes. Não é por acaso que as fotos de divulgação da Netflix sempre tragam o personagem armado. É uma ironia, imagino, involuntária -que adotei, voluntariamente, na própria foto principal da newsletter.
“Rebel Ridge” vai se despindo de suas camadas de maneira lenta. Há uma nuvem sobre racismo que acompanha a saga de Terry, mas ela vira uma tempestade muito mais abrangente sobre financiamento policial de pequenas cidades, o descaso das autoridades, corrupção sistemática, armamento ostensivo, comportamento miliciano, machismo e poder branco.
Tudo isso sem discurso retirado de Instagram e enfiado goela abaixo do espectador. Com “Rebel Ridge”, Jeremy Saulnier criou um candidato a clássico do cinema de ação moderno.
Pena que não tem um cinema para carimbar essa afirmação.
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