Diretores famosos usam o cinema como terapia pessoal
Três cineastas consagrados revisitam seu passado em busca de soluções para problemas de culpa, identidade e família.
No início de outubro, participei de uma sessão especial de “Armageddon Time”, novo filme de James Gray que está em cartaz nos cinemas brasileiros.
Nele, o diretor revisita sua infância e um caso que assombrou seus pensamentos durante anos que envolve o fim da sua amizade com um garotinho negro na Nova York do início dos anos 80.
Gray explicou a origem do roteiro que escreveu para o longa que estreou nesta semana no Brasil -inclusive com produção da produtora paulista RT Features.
“Três coisas diferentes foram responsáveis pelo filme. Adoro contar histórias de ninar para meus filhos, mas eles agora estão grandes demais. Certa vez, os levei para conhecer minha antiga casa e acho que eles esperavam um castelo. “É isso?”. Eu fiquei bastante emocionado, pois não havia quase nenhuma evidência de que havíamos morado ali. A ideia começou naquele momento. Então, fui para a selva, para a floresta amazônica, para as filmagens bem difíceis de ‘Z - A Cidade Perdida’ (2016). Foi uma experiência criativamente recompensadora, mas punitiva. Fiquei exausto fisicamente depois disso. E veio ‘Ad Astra – Rumo às Estrelas’, que foi difícil por outras razões: não tive controle sobre o filme, que terminou comprometido. Não tinha passado por algo semelhante havia algum tempo. Por fim, estava sozinho em Paris, onde iria dirigir uma ópera pela primeira vez, no outono de 2019, e me vi num confinamento culposo solitário. Trabalhava durante o dia e ficava sozinho durante a noite. Isso era um convite para uma contemplação pessoal exagerada. Queria fazer algo mais íntimo possível e, ao fazer isso, poder dizer: ‘Ei, esse sou eu, um merdinha horrível’. Vira uma fantasia, o filme não é algo realista ou exato nos detalhes. É uma versão exagerada daquela época. Mas, no fim, você só tem a si mesmo para se revelar no trabalho. Foi o que tentei fazer.”
“Armageddon Time” vai fundo não apenas na alma de um homem atormentado por um pequeno e doloroso episódio da infância, mas também traça uma radiografia da época a partir do núcleo formado pela sua família judia disfuncional, mas feliz.
Gray seria Paul (o excelente Banks Repeta), garoto de onze anos que vive com os pais (Jeremy Strong, de “Succession”, e Anne Hathaway) e tem uma forte relação com o avô (Anthony Hopkins), um homem que tenta ressaltar o lado artístico do menino e passar lições de vida para lidar com a onda de antissemitismo que terá de enfrentar.
Isso leva o garoto a forjar um laço de amizade forte com Johnny (o ótimo estreante Jaylin Webb), um brilhante e sonhador garoto negro que já sabe muito bem as dificuldades que o preconceito lhe impõe todos os dias -inclusive na classe em que divide com Paul.
Essa relação, obviamente, vai gerar um conflito muito além do cercado familiar de Paul e passa por raízes reacionárias que se prolongam até hoje nos Estados Unidos e no mundo. E o tal evento que marcou o cineasta para sempre é apenas a soma do que uma criança não enxerga, mas que Gray revive com sinceridade.
O tema pode ter sido trabalhado de maneira mais contundente e complexa em outros longas, mas ainda assim “Armageddon Time” ganha pontos pela emoção real, pela honestidade de abrir uma Caixa de Pandora íntima.
Um pequeno trauma para uma sociedade, uma grande dor para um menino.
E James Gray não é o único nesta terapia custosa.