O lado obscuro do Globo de Ouro
Premiação tenta se livrar da aura de racismo e corrupção, mas tem um longo caminho rumo à credibilidade.
O longa brasileiro “Ainda Estou Aqui” foi indicado ao Globo de Ouro de Melhor Filme de Língua Estrangeira, que acontece neste domingo (5). E Fernanda Torres foi indicada como Melhor Atriz Dramática pela mesma obra, repetindo o feito da mãe, Fernanda Montenegro, 25 anos atrás.
Sem disputar com as favoritas ao Oscar, que estão na categoria de Melhor Atriz de Comédia, Torres tem chances reais de levar o prêmio. “Ainda Estou Aqui” tem uma missão mais difícil.
Bacana. Todos os envolvidos podem e devem comemorar.
Não por existir alguma intersecção entre os votantes do Globo de Ouro e o Oscar, mas porque o filme ganha visibilidade e mídia na reta final da campanha, algo essencial na hora da Academia começar a debater seus indicados.
Não há nenhum problema na festa.
Mas é bom saber o que estão celebrando.
E onde estão celebrando.
Em 2021, a Associação de Imprensa Estrangeira de Hollywood (HFPA), que comandava o Globo de Ouro, foi alvo de denúncias de corrupção, fraude e racismo em uma série de reportagens lideradas pelo “Los Angeles Times”.
Apesar das acusações e da investigação das autoridades nos casos mais sérios, ninguém foi preso.
Dois anos depois, o bilionário Todd Boehly, dono do Chelsea e do LA Lakers, por meio da joint venture entre a Eldridge Industries e a Dick Clark Productions, comprou a marca “Globo de Ouro” e aboliu a HFPA, dando uma escolha para os seus membros (cerca de 100): peguem US$ 220 mil e caiam fora agora, ou fiquem por mais cinco anos e ganhem um salário anual de US$ 75 mil durante o período.
Nada mal para vários integrantes que viam uma investigação federal pela frente e estavam sendo acusados de racismo. A chamada queda para cima. Uns toparam, outros ficaram. Todos ganharam.
O Globo de Ouro, então, passou de uma organização sem fins lucrativos acusada de corrupção para uma empresa com fins lucrativos. Tacada de mestre.
A coisa é tão nebulosa que Boehly está sendo acusado de fraude por antigos membros da associação.
Apesar de manter alguns membros da antiga gestão -vale lembrar que nem todos são corruptos ou racistas só por serem membros-, o novo chefe fez um movimento esperto.
Convidou um bocado de jornalistas para formar um corpo eleitoral, segundo o Globo de Ouro, “diverso e internacional com mais de 300 integrantes”. Mas sem direito a participar da festa no salão principal ou ganhar qualquer salário, claro. Alguns nem menos conseguiram vagas para cobrirem o tapete vermelho para seus veículos. Outros, sim. E vão ficar numa tenda, segundo me contaram, fora do hotel da cerimônia.
Ou seja: os jornalistas que toparam fazer parte do grupo de votantes estão trabalhando diretamente e de graça (!) para um bilionário lucrar com seu novo show.
Ei, não estou julgando ninguém. Tenho amigos no Globo de Ouro. Sei que a profissão não anda fácil e que acesso a lançamentos e coletivas de imprensa pode ser uma grande diferença no fim do mês.
Mas não podemos tampar o sol com a peneira e achar que tudo é lindo. É preciso contextualizar tudo. E tem jornalista esquecendo alguns “poréns”, só destacando o oba-oba das indicações do filme brasileiro.
Muitos poderiam achar que estou escrevendo isso por dor-de-cotovelo, por não fazer parte do Globo de Ouro, mas da Critics Choice Association -que também está longe de ser perfeita, mas por outros motivos.
Justo, desconfiar sem exageros é uma qualidade.
A verdade é que nunca tentei fazer parte do Globo de Ouro, primeiramente porque não me via como crítico, mas como jornalista. Depois da pandemia, a diferença ficou borrada, mas podemos conversar sobre isso em outra newsletter. Em segundo lugar, muitos já conheciam a fama da HFPA em Los Angeles, de casos de assédio e racismo ao corpo de integrantes que quase nada tinha a ver com cinema ou TV e muito menos com jornalismo.
Você precisa desconfiar, exigir transparência e ter comprometimento com o leitor. O movimento de Boehly foi esperto. Ao colocar centenas de jornalistas como votantes de um prêmio que pode não ter muita credibilidade, mas tem apelo popular, pode gerar uma boa blindagem. Poucos falam dos problemas do Globo de Ouro.
Se você trabalhar para ele, pode ser demitido por ele, não?
E, sei lá, pode ser que eu seja meio antiquado. Mas repare numa coisa engraçada:
Todd Boehly é fundador e CEO da Eldridge Industries. No perfil oficial do executivo, você pode ver algumas de suas propriedades. Entre elas, a Penske Media, que simplesmente é dona da “Variety”, “The Hollywood Reporter” e “Deadline”, as três maiores publicações da indústria cinematográfica norte-americana.
Logo depois, vem o nome da dick clark productions, que é a produtora oficial do Globo de Ouro.
Uma mente mais desconfiada poderia pensar: “Quer dizer que Boehly poderia divulgar o Globo de Ouro como quisesse em suas revistas, publicando apenas o que interessar e escondendo o que não interessar?”
Hmmm.
Agora, uma mente com mais paixão por teorias da conspiração poderia ir mais fundo no perfil oficial do bilionário e perceber que ele também tem investimentos em duas produtoras/estúdios, a britânica Fulwell 73 e a superpoderosa e aclamada A24.
Ou seja, essa mente poderia traçar uma linha de pensamento, veja só, bem interessante: “Boehly poderia produzir um filme, publicar ótimas críticas deste filme nas suas publicações influentes, criar hype para prêmios e ainda premiar seus próprios filmes”. Não é uma beleza?
Não estou dizendo que, por exemplo, “The Brutalist”, da A24, que é um sério candidato ao topo da minha lista de melhor filme do ano, tenha sido beneficiado. Ou que há alguém na Penske Media obrigando seus críticos e repórteres a publicarem textos positivos sobre ele. Já tem muita gente fazendo isso sem essa ajuda.
Mas o Globo de Ouro, para tentar ganhar alguma credibilidade, deveria ser como o velho ditado:
“A mulher de César não basta ser honesta, deve parecer honesta”.
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